Crítica Inútil #01: Edouard Louis, ‘Vale Tudo’, um pouco de terror e o início de alguma coisa.
Esse é um novo projeto. Na verdade é mais um de tantos. Se alguém quiser comprar ideias, estou vendendo.
Estou aqui com mais uma newsletter para falar de assuntos que eu amo, mas que por algum motivo que deve funcionar apenas na minha cabeça, não se encaixam necessariamente com a outra newsletter que esse jovem aspirante a muita coisa relacionada a escrita imagina. A outra news ‘Não Seja Útil: Uma newsletter a favor da mediocridade’, nem sempre contempla críticas ou comentários sobre obras específicas que será o caso aqui da ‘Crítica Inútil’. Espero que você se divirta, e se inscreva nas duas. Um beijinho e seja bem-vinda (o)!
Edouard Louis, ‘O Fim de Eddy’.
Edouard Louis é um escritor francês de apenas 31 anos, que tem como escrita fundamental a autoficção. Seu primeiro romance, que além de autoficcional é também autobiográfico, ‘O Fim de Eddy’, teve lançamento no Brasil pela editora TusQuets em 2018. Esse livro foi um sucesso estrondoso na França, e para uma estreia na literatura, Edouard Louis conseguiu um feito extraordinário com mais de 300 mil exemplares vendidos. O livro no momento que escrevo esse news, está indisponível para compra na Amazon, mas disponível no site ‘Planeta de Livros’ por 52,90. Louis estará neste sábado, dia 12 de outubro, na Flip (Feira Literária Internacional de Paraty), num painel individual, sendo um dos escritores internacionais mais aguardados do evento, segundo as reportagens do momento.
‘O Fim de Eddy’ é um romance gay que narra a infância e adolescência de Eddy, um garoto afeminado na zona industrial e pobre do norte da França, com uma família repleta de problemas. Um pai alcoólatra e violento, uma mãe angustiada e depressiva, e que por isso oscila entre o amor e a agressividade, e um irmão mais velho que segue os caminhos do pai. O magnifico em ‘O Fim de Eddy’, é a angústia, a raiva e a tristeza com que Louis narra sua história, que é ele, e de como, ao longo de 176 páginas, poderia ser possível uma criança sair de forma menos ‘estragada’ vindo de um lar como o que ele cresceu.
Quem também não sai nada indiferente dessa narrativa é o leitor. O livro causa, logo de saída, um mal-estar intenso. A literalidade das ações e as riquezas das cenas contadas, chegam a causar ânsia, raiva, indignação e, junto a tudo isso, a vontade de leitura também vai embora. Mesmo sendo um livro curto, possível de ser lido uma semana, confesso que demorei praticamente um mês para dar fim a essa empreitada. Não é um livro fácil de ler justamente pelas inúmeras violências que ele sofre, especificamente por ser um menino ‘diferente’, ou seja, um menino sensível e afeminado.
O mais curioso, é que junto disso tudo, existe um amor naquela casa que atravessa as violências. É uma narrativa que nos desafia o tempo todo ao apresentar o racismo, a homofobia e o machismo para em seguida mostrar um pequeno gesto de afeto, de que aquelas pessoas eram mais complexas e profundas do que suas violências repetidas à exaustão.
‘O Fim de Eddy’, assim como os outros livros do autor, sempre têm uma narrativa sociológica e política, ou seja, é um livro que foge da dinâmica de romances tradicionais, em que o personagem principal é quase responsável por todos os acontecimentos da sua jornada. Discute muito intimamente a ideia de masculinidade que atravessa gerações, o uso de entorpecentes como o álcool para se libertar da opressão da vida operária e desgastante dos trabalhadores, e de como o impacto dessa vida miserável é responsável pela morte, as vezes literal, e pela morte em vida de diversas pessoas naquele ambiente.
Uma das partes mais doloridas de ‘O fim de Eddy’ é sua jornada de descoberta da sexualidade que acontece durante todo o livro, alternando entre histórias da mãe e violências do pai, que ao contar a história do pai é contar também uma história de desejos reprimidos e afetos tortos. A desconfiança da homoerotismo do pai, de experiências homossexuais desse mesmo pai e de vários outros garotos e homens do vilarejo que depois se transformariam em eterna violência contra os ‘diferentes’, contra Eddy.
“(...)Eu não sei se os garotos do corredor teriam classificado seu comportamento como violento. No vilarejo, os homens nunca usavam essa palavra, ela não existia no seu vocabulário. Para um homem a violência era algo natural, evidente.”
Eddy tem início a sua vida sexual muito cedo, trazendo à tona questões muito sensíveis. Há o relato da descoberta e confusão extrema pela falta de orientação, ‘Se eu gostava deles, eu só podia ser uma menina’ diz. As confusões de gênero e orientação sexual na cabeça de uma criança de 10 anos, nos invade com uma tristeza profunda, não pela questão da sexualidade, mas pela ausência de alguém que acolhesse aquela criança, que explicasse as diferenças entre gênero e sexualidade, e que finalmente dissesse a ele que tudo bem gostar de meninos mesmo sendo menino.
Claro que esse é o desejo do leitor e do próprio Eddy se narrando anos depois, mas essa é uma sensação que nos acompanha em toda a leitura, a ideia de que as coisas naquele lugar e na vida de Eddy poderiam ser muito diferentes. É uma eterna mistura de falta de informação, violências históricas assentadas e normalizadas, estereótipos e preconceitos de toda ordem. Para sobreviver era preciso sair ou fugir desse ambiente extremamente hostil que destrói qualquer possibilidade de outro tipo de vida e existência. É o fim de Eddy, pois depois de tudo aquilo e vivendo na cidade grande, muita coisa deveria ter fim. Era preciso se transformar, mudar, mas também era preciso contar a história desses outros.
É por isso que em seguida Louis escreveu outros romances muito interessantes, sendo ‘Quem Matou meu Pai’ e ‘Lutas e Metamorfoses de uma Mulher’, que em breve devo trazer uma review por aqui. Por enquanto, fica a recomendação dessa leitura e para conhecer mais a jornada desse grandes escritor. É algo muito próximo do que Annie Ernaux vem fazendo na sua jornada como escritora, romances autobiográficos muito duros e objetivos, com pouca adjetivação, o que deixa a leitura ainda mais desafiante. De todo modo, tenho para mim, que Edouard Louis é um dos escritores mais interessantes do momento. Além é claro, de uma enorme identificação, especialmente na relação com o pai e de como ser um garoto ‘diferente’ num ambiente quase rural, em que a intelectualidade e a cultura para além dos costumes locais nunca foi o forte daquela pessoas.
O que sinto ao ler os livros de Edouard Louis é como se alguém desse sentido a minha maneira de contar histórias que parecem ser banais, mas na verdade é a chance enorme de um relato literário de amadurecimento sem cair nos clichês da autoajuda ou de histórias tristes com um fim de superação. Tem marcas que são para a vida toda, e algumas coisas que vivemos até podem não doer mais ao longo da vida, mas continuam sendo tristes, solitárias e difíceis de serem narradas, até que encontram uma testemunha do lado daí.
‘Vale Tudo’ e minha breve história com as novelas
Esse título é quase um clickbait. É óbvio que Vale Tudo é uma grande novela, não há dúvida, mas obviamente há outras obras tão boas quanto. Já fui muito noveleiro, a primeira novela que lembro de acompanhar foi Terra Nostra, escrita por um dos maiores criadores de diálogos da teledramaturgia brasileira Benedito Ruy Barbosa. Depois de Terra Nostra, lembro de ter visto todas as novelas das 21h até Avenida Brasil de João Emanuel Carneiro, que por sinal, estreou recentemente com seu novo trabalho Mania de Você, essa sendo a primeira novela que estou acompanhando firmemente desde Avenida Brasil.
Eu era completamente viciado nas novelas das 18h, Alma Gêmea, Chocolate com Pimenta, Esperança, Sinhá Moça e afins. As novela das 19h já não eram a minha praia, sempre achei as novelas urbanas-classe média meio chatas, mas lembro de Cobras e Lagartos, Da Cor do Pecado e Cheias de Charme (essa foi a última junto de Avenida Brasil que assisti), mas que por motivos de fazer um curso de administração no Senac (???) não consegui acompanhar tudo. Já no final de 2012 me mudei de cidade e fui morar sozinho, e tendo que trabalhar durante o dia e fazer faculdade a noite, jamais tive tempo de ver novela. Só agora, depois de quase 12 anos, voltei a ter algumas noites livres para acompanhar, e graças ao Globoplay, quando não consigo assistir no horário que é exibido, assisto depois.
Eventualmente vi alguns capítulos do remake de Renascer, e os últimos foram um primor em qualidade técnica e narrativa. No momento estou assistindo Mania de Você – que confesso ter ficado um pouco difícil de assistir pela completa ausência de tempo de se acostumar com os personagens. Novidade é que estou vendo pela primeira vez Vale Tudo, do grande Gilberto Braga e Aguinaldo Silva. Ainda estou no capítulo 25 – por questões de trabalho fiquei uns dias sem conseguir assistir – mas sei que em breve a maior vilã da televisão brasileira, Odete Roitman (papel fenomenal de Beatriz Segall) aparecerá. Eu já sei a história, já vi vários trechos no Youtube, minha mãe ama Vale Tudo, minha avó também ama, então é um assunto de casa. Está sendo divertidíssimo acompanhar.
É muito chocante Fátima Acioly (Gloria Pires), ter vendido a casa que morava com a mãe, Raquel, e ter largado ela na rua, isso me indignou muito, e é um excelente gancho para continuar a assistir. Ao mesmo tempo, não dá para negar que a personagem Raquel (Regina Duarte), é muito chata, com um papinho de moralidade, gente do bem, honesta e cheia de valores. É difícil gostar dela e isso piora quando de alguma forma você vê que a Regina Duarte meio que se transformou na sua personagem quando virou uma bolsonarista transloucada e delirante, pregando aos quatro ventos esses valores morais da boca para fora. Isso de forma alguma tira o mérito da Regina Duarte ser uma grande atriz, é fenomenal sua atuação, não apenas em Vale Tudo mas em todas as novelas que participou. Ela era a mesmo a Heleninha do Brasil.
Ainda não sei quando vou terminar de assistir, mas pretendo concluir antes do remake que a Globo está planejando para ser exibida ano que vem quando a emissora completa 60 anos de existência. No novo projeto está Manuela Dias, responsável pela novela Amor de Mãe e a série Justiça. Já confirmadas no elenco, Taís Araújo como Raquel, Bela Campos como Fátima e Débora Bloch como Odete Roitman. Ainda há sondagens acontecendo e há boatos de que as gravações começam em novembro. Eu não sei o que esperar, mas espero que seja tão boa quanto a original, que é fantástica (provavelmente não vai ser, mas tudo bem).
Existem diálogos tão interessantes, questões sociais e políticas bem colocadas e atuações tão magnificas, que fico hipnotizado com tamanha beleza em tela, além de uma direção de novela propriamente dita. Uma direção que consegue ser inteligente e estilosa no mesmo momento que é sóbria e simples. Não era preciso nivelar o espectador por baixo, como algumas hoje em dia fazem, provando que é possível ser inventivo, cuidadoso e mesmo com isso manter uma trama intrigante, corajosa e política no momento que o país votava para presidente pela primeira vez depois de mais de 20 anos de ditadura militar.
Voltarei a falar sobre ‘Vale Tudo’ em breve, pois na semana que escrevo essa news, me sobra um tempinho para correr com os capítulos “atrasados”.
Vai um filminho de terror?
O serviço de streaming Mubi – que na minha opinião é o melhor serviço de streaming atualmente – preparou uma coleção de Halloween com diversos filmes do gênero e com grandes clássicos nos subgêneros, do horror clássico ao folk horror e body horror.
Está disponível na Mubi o famoso e controverso Midsommar – O mal não espera a noite (2019), com Florence Pugh e direção do queridinho para alguns e pouco inspirado para outros, Ari Aster. Midsommar está dentro do subgênero Folk Horror, caracterizado por histórias que são vivenciadas em regiões rurais e que lidam com a mística em torno do folclore, natureza e elementos sobrenaturais advindos da vivência em ambientes isolados e naturais. Vale muito a pena assistir, e se quiser emendar, fica a sugestão do cult O Homem de Palha (1973), do diretor Robin Hard, que considero melhor que Midsommar, pois o filme do Ari Aster é uma clara inspiração em O Homem de Palha.
Dia 18 chega o clássico O Massacre da Serra Elétrica (1974) e o famosíssimo Ring (1998), ou O Chamado só que o original japonês, não o estadunidense. No dia 11, fica disponível Desejo e Obsessão (2001) da magnífica Claire Denis. Ainda tem REC (2007), um bom found footage no estilo A Bruxa de Blair. E para quem é fã de body horror como eu, também está disponível o recém-clássico Titane (2021) da diva Julia Ducournau.
Para assistir, assine a Mubi nesse link que você ganha 30 dias gratuitos para assistir esses e vários outros filmes, não apenas terror, mas de todos os gêneros possíveis e que nem sempre estão nos lançamentos comerciais, sendo uma oportunidade de conhecer mais e melhor outros cinemas de outros lugares do mundo.
Acesse: https://mubi.com/t/web/global/gEgk8N25
E essa newsletter, o que esperar?
Particularmente eu não sei. Tenho sentido a necessidade de escrever mais nesses últimos meses e curiosamente tenho conseguido dar um destino a essa necessidade. E como a outra news nem sempre cabe assuntos de cultura, pois falo mais sobre comportamento, psicanálise e cultura social e não ‘entretenimento’, pensei que fosse de bom tom ter esse outro espaço para falar de outras questões que me chamam atenção e escrever críticas de filmes que nem sempre vão para o @cinem(ação).
Confesso também uma dificuldade em dar foco em várias coisas ao mesmo tempo, mas nos últimos meses tenho lido mais, visto mais filmes e conversado com mais pessoas sobre isso, o que acredito ter feito crescer minha vontade de escrever mais sobre essas coisas. Aqui não deixa de ser também, um espaço de testes para reviews de livros que claramente não é minha praia, mas tenho estudo um pouco sobre crítica e reviews de livros e tenho gostado. De alguma forma, saber como criticar um livro, tal qual faço com o cinema, me incentiva a querer ler mais, inclusive coisas que até pouco tempo atrás não me despertavam interesse.
Isso tudo pode auxiliar em um projeto que estou montando e que tem a ver com escrita, mas ainda é muito cedo para falar sobre. Em breve vem aí e devo anunciar, não só aqui, mas em todos os lugares possíveis. Por enquanto é isso, um grande abraço para você que ficou até aqui lendo minha ladainha insuportavelmente infinita. Convide mais pessoas para ler essa news, curta e comente o que você achou e me dê dicas de leituras e novelas interessantes, além de filmes é claro. Prometo assistir ou ler depois, já que a lista está grande, mas se tem uma felicidade que cultivo, é aumentar minha lista de filmes para ver, livros para ler, lugares para ir e músicas para ouvir.